A magistral poetisa e escritora Clarisse Lispector, em 16 de março de 1968, escreveu, no Jornal do Brasil, o conto “Restos de carnaval”, publicado no livro Felicidade clandestina, de 1971. O conto apresenta um cenário de dor e alegria sentida por uma criança de oito anos, que queria brincar o carnaval, mas com a mãe doente, “ninguém em casa tinha cabeça para carnaval”. E parecendo prever o isolamento social e a impossibilidade de aglomeração, a personagem do conto poderia “ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado (…), olhando ávida os outros se divertirem”.
Com seu ritmo de prosa e brilhantismo, a escritora apresenta um sentimento genuíno dos que amam o carnaval e a sua euforia, com o qual compartilhamos, nos dois sentidos da palavra:
“E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.”
O carnaval, fenômeno cultural, social, artístico, com repercussões econômicas, marca a identidade de um povo que sai as ruas promovendo uma verdadeira festa popular, que une gerações em torno de camadas históricas de tradições, fruto da miscigenação brasileira. Mas carnaval combina com aglomeração, com beijos e abraços, e no período mais sombrio e brutal de nossa existência, o carnaval deve ser silenciado e as aglomerações deixadas para outro momento. E como disse Clarisse Lispector: “Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico?”.
As mortes por covid-19 superam a casa dos mil, em média móvel diária. O Brasil soma mais de nove milhões de casos, com o total de duzentos e trinte a sete mil quatrocentos e oitenta e nove pessoas levadas a óbito. Diante de tão dura realidade, não resta outra alternativa senão abraçar as medidas de profilaxia e seguir o estandarte das recomendações cientificas e médicas, evitando, ao máximo, ambientes que promovam a aglomeração e, por via de consequência, a proliferação do vírus.
E falando de medias sanitárias, que são individuais com dimensões coletivas, não podemos esquecer das máscaras, e nossa autora, voltando a Clarisse Lispector, no conto em questão, que não esqueceu, e apresenta outra sentença que, em um recorte com os dias atuais, parece ser uma visão do futuro e cai com uma luva. Clarisse Lispector, sobre as máscaras, diz: “E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário”.
Como se fosse um recado, a nossa heroína, uma criança que “nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado”, quando vestia a fantasia para sair de casa, foi barrada pelo jogo de dados de um destino que é irracional e impiedoso, pois a sua “mãe de súbito piorou muito de saúde”. E não brincar o carnaval da forma que conhecemos é um gesto humano e de solidariedade aos que, de súbito, foram atingidos pela covid-19.
Que a nossa “fome de sentir êxtase” não seja maior do que nosso desejo de lutar, defender e proteger a vida, pois outros carnavais virão.
Encerramos nos apoiando, ainda, em nossa autora que, sobre ter ou não ter carnaval, escreveu: “Mas houve um carnaval diferente dos outros.”