Os militares queriam mesmo saber tudo sobre a ligação do jornalista Vladimir Herzog com o Partido Comunista Brasileiro, PCB. Vlado, assim carinhosamente chamado pelos colegas, era diretor da TV Cultura. Naquela madrugada do dia 25 de outubro de 1975 ele foi prestar depoimento sobre seu posicionamento ideológico nas salas obscuras do Departamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), do II Exército, em São Paulo. O que já seria um exercício de violência intelectual – levar um homem para dar explicações sobre sua forma de pensar a sociedade – transformaria-se em tortura; provocaria uma dor que nem eu, nem você, caro leitor, seríamos capazes de explicar. Herzog seria morto ali mesmo. Os militares teriam uma versão para tamanha atrocidade: suicídio.
Ora, a fotografia que até hoje é capaz de chocar as pessoas mais insensíveis (ou insensatas) revela o corpo de um homem com um aparente pedaço de pano envolto no pescoço, preso a grade de uma janela, com o detalhe estarrecedor de alguém que estava quase de joelhos. Isto mesmo, um suicídio ajoelhado(!). Daquela data desbotada até ontem se passaram quase 38 anos (quase a minha idade) para que este país, ainda moldado pelos traços profundos da ignorância, tivesse como reparar, simbolicamente, um crime que caminhava para resultar em conformismo e esquecimento. Aliás, estar ‘conformado’ e ‘feliz’ são algumas das características mais evidentes da fisionomia atual da nossa triste e apagada sociedade – mas esse assunto vai ficar para um outro bate-papo.
A nova certidão de óbito do jornalista foi emitida por ordem do juiz Márcio Bonilha Filho, após uma solicitação da Comissão Nacional da Verdade, CNV. No documento produzido pelos militares constava que o fim da vida do Camarada Vlado havia sido provocado por “morte por asfixia mecânica”. Com o reconhecimento do Estado Brasileiro a certidão aponta agora que os motivos foram “lesão e maus-tratos”, isto é, tortura e sevícias. Esta alteração documental, creio, foi só mais uma notícia de jornal para milhões de brasileiros. Mas para outros tantos que sonham e, ao seu modo, fazem sua parte para que alguns valores universais se mantenham vivos, este 15 de março de 2013 recebeu um selo que a História há de guardar e jamais esquecer.
Simultaneamente este fato tão representativo para a memória nacional reforça e estimula aqueles que não se ‘conformam’ com as injustiças, para que sigam confiantes no futuro, no sentido contrário de quem permanece ‘feliz’ com o próprio umbigo e de costas para o mundo que nos cerca. Como diria Albert Camus: “Pior que a pobreza econômica é a miséria existencial”. Por isso lembremos do que, certamente, diria o poeta Agenor de Miranda, o Cazuza: “Vamos pedir piedade, pra essa gente careta e covarde”. Por fim, salve os camaradas Herzog e Alexandre Vannucchi Leme – que ontem também teve reparadas as inscrições que tratavam de sua morte, ocorrida sob tortura, como se tivesse sido ele “vítima de um atropelamento, enquanto fugia da polícia”.
*Almir Vilanova é jornalista