“Quando os homens perceberem que o tempo derrotou muitas fés combativas, eles podem vir a acreditar, mais do que acreditam nos fundamentos mesmos de sua própria conduta, que o maior bem que se possa almejar é melhor alcançado pela livre troca de ideias – que o melhor teste da verdade é o poder da ideia de ser aceita em meio à competição do mercado, e que a verdade é o único solo sobre o qual os desejos deles podem ser realizados com segurança” (Oliver Wendell Holmes, Jr.).
As palavras com que abro este artigo correspondem a uma citação muitíssimo conhecida entre os juristas dos Estados Unidos da América e provavelmente ignorada no Brasil. Precisamente com essas palavras, Oliver Wendell Holmes, Jr. – juiz da Suprema Corte americana de 1902 a 1932 – delineou um conceito que viria a ser chamado de livre mercado de ideias (free marketplace of ideas) e que influenciaria toda a jurisprudência subsequente sobre liberdade de expressão naquele país.
Com efeito, o conceito de Holmes estabelece uma relação entre a liberdade de expressão e a noção econômica de livre mercado. Da mesma forma como, numa economia de mercado, os consumidores são beneficiados pela concorrência entre os ofertantes de bens e serviços, somente uma livre competição entre as ideias pode realmente beneficiar o debate público, criando as condições para que dele emerja a verdade. Segundo o notável jurista americano, esse livre mercado de ideias encontra-se garantido no que entendemos por liberdade de expressão: de fato, se as ideias podem – antes, devem – circular livremente, não se pode admitir qualquer censura contra elas.
No Brasil, a Constituição Federal assegura, em seu artigo 5º, IV, a livre manifestação do pensamento e, no inciso IX do mesmo artigo, a liberdade de expressão da “atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. À primeira vista, portanto, parecem não faltar previsões normativas que fundamentem um livre mercado de ideias entre nós.
É lamentável constatar, porém, que não somos – nós, os brasileiros – um povo amante da liberdade. A todo instante, ouvem-se vozes não apenas a apoiar, mas até a pedir, restrições do Estado à vida livre dos cidadãos. Não é de se estranhar que, como regra geral, ao acadêmico de Direito brasileiro se ensine, desde cedo, que “nenhuma liberdade é absoluta” – e se, em outras partes do mundo, esse ponto de vista corresponde a apenas uma entre as muitas correntes de pensamento sobre o tema, entre nós ele tende a assumir o status de postulado indiscutível.
Talvez, porém, a afirmação de que as liberdades não são absolutas nem fosse, em si, tão problemática se dela não decorresse uma gravíssima consequência: a de aceitarmos, dia após dia, no Brasil que, sob esse fundamento, as liberdades sejam a todo instante cerceadas, dizimadas e trituradas pelo Estado. O tedioso argumento está sempre pronto, como uma carta na manga a ser prontamente sacada: basta uma nova penada do legislador tornando menos livres os cidadãos para que alguém se apresse em defender a nova restrição estabelecida, afirmando que as liberdades, afinal, são sempre relativas.
E, no momento em que escrevo, mais uma vez, esse mesmo argumento está em vias de ser utilizado, face à recente aprovação do Projeto de Lei n. 2.630/2020 no Senado Federal. A iniciativa tem a intenção declarada de combater a disseminação de notícias falsas (fake news), mas, ao fim e ao cabo, não passa de mais uma medida destinada a restringir nossa livre expressão.
Chamou-me especialmente a atenção no Projeto a criação de um Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, que, dentre várias funções, estará incumbido de fiscalizar as empresas mantenedoras de redes sociais. Certamente, ninguém duvida de que combater a desinformação seja um intuito nobre: o problema, aqui, é o de delegarmos a um órgão externo o poder de examinar conteúdos, classificando-os como informação ou desinformação.
Indubitavelmente, a medida favorecerá a criação de verdades oficiais, com exclusão de pontos de vista discordantes. Nada mais distante do livre mercado de ideias! Aliás, a ideia de um conselho fiscalizador me fez recordar os órgãos censores da antiga União Soviética, cuja atuação veio a ensejar o fenômeno do samizdat (em russo, autopublicação). Esse fenômeno consistia na distribuição clandestina de textos censurados, os quais eram artesanalmente datilografados a máquina e copiados por meio de folhas de carbono. (E, a esta altura, não custa destacar que, nos atuais tempos de censura politicamente correta, as redes sociais tem tornado possível uma nova espécie de samizdat na vida virtual).
O PL 2.630/2020 pretende também reprimir o encaminhamento de mensagens em massa. Por isso, estabelece para todas as redes sociais o irrisório limite de cinco encaminhamentos para cada mensagem, hoje infelizmente já praticado pelo Whatsapp. Parece, assim, inegável o objetivo de lançar sobre todo e qualquer repasse de mensagens uma suspeita antecipada de fake news – afinal, quem você pensa que é para encaminhar uma piada a mais do que cinco amigos por vez? E não é só: esse já pequeno limite ficará reduzido a apenas um único encaminhamento em períodos de propaganda eleitoral e situações de emergência ou calamidade pública – ou seja, nos momentos em que a troca de ideias e informações seria ainda mais importante! Provavelmente, o juiz Holmes se revolveria no túmulo ao saber disso…
O projeto não para por aí: quaisquer mensagens repassadas cinco vezes no período de quinze dias – o que, convenhamos, significa um encaminhamento ridiculamente pequeno do ponto de vista quantitativo – terão de ser armazenadas pelas redes sociais por um prazo de três meses. Em síntese: se você tem o costume de encaminhar mensagens, terá sua comunicação permanentemente monitorada pelo novo KGB virtual.
(A propósito: talvez ninguém tenha parado um minuto para pensar, a título de analogia, que as conversas telefônicas – por meio das quais também é possível transmitir fake news – somente podem ser objeto de interceptação e gravação mediante ordem judicial. Reflitamos, por conseguinte: se tanto as comunicações virtuais quanto as telefônicas são abrangidas pela privacidade individual, por que raios as primeiras tem de ser submetidas a um monitoramento policialesco, ao invés de gozarem da mesma proteção de que se revestem as segundas?)
Mas não são poucos a dizer que as restrições à livre expressão nas redes sociais seriam necessárias em virtude de os usuários “não terem condições” de avaliar se os conteúdos que recebem são verdadeiros ou falsos. Notemos, todavia, que este argumento começa por tratar a nós, indivíduos, como seres incapazes de pensar e termina por sugerir a necessidade de um agente externo – seja ele um órgão do Estado ou mesmo a imprensa especializada – para “peneirar” os conteúdos a que podemos ter acesso. Numa daquelas “boas intenções” que conduzem ao inferno, tentam nos impingir a censura sob o amável pretexto de nos proteger de nós mesmos.
Ora, um conselho que já tive a oportunidade de dar a várias pessoas próximas é o seguinte: jamais emprestem suas mentes para que outros pensem por vocês. Mas esse empréstimo mental compulsório é justamente o que ocorre quando se estabelece um comitê fiscalizador com a atribuição de averiguar o que é e o que não é verdade. Em uma sociedade onde a tirania não impere, é a consciência individual o tribunal último competente para julgar qualquer informação que surja no livre mercado das ideias. Cabe, pois, ao indivíduo submeter ao escrutínio de seu pensamento crítico os conteúdos que recebe e, em última análise, decidir no que lhe parece razoável acreditar.
Por outro lado, é certo que o jornalismo profissional tem uma importante missão a cumprir em toda sociedade democrática – e, não por outra razão, sempre me opus a qualquer tentativa de se instituir um controle social da mídia, considerando essa pomposa expressão nada mais do que um eufemismo para a mais abjeta censura. No entanto, reconhecer à imprensa seu importante papel não pode equivaler a afirmar que somente jornalistas de formação estejam gabaritados a discernir entre informações verdadeiras e falsas.
A propósito desse tema, aliás, é sempre oportuno recordar as revelações apresentadas por Yuri Bezmenov – antigo funcionário da agência soviética de notícias RIA-Novosti – após haver desertado para o Ocidente. Em certa ocasião, sendo entrevistado por Edward Griffin para a televisão americana, Bezmenov mostrou detalhes de um amplo esquema de desinformação criado pela União Soviética, que envolvia desde o simples fornecimento de informações falsas a jornalistas de fora do bloco socialista até o estabelecimento de uma revista dentro dos Estados Unidos com o simples objetivo de divulgar fake news. Como não é difícil perceber, a imprensa é importantíssima e deve ser livre, mas nem está imune a falhas nem representa uma garantia totalmente segura contra notícias inverídicas.
Ressaltemos, por oportuno, que ninguém desconsidera que as fake news são extremamente indesejáveis e que são uma espécie de outro lado da moeda da liberdade de expressão. O que não faz sentido é adotar um remédio cujos efeitos colaterais sejam maiores que a própria doença – e censurar conteúdos e instaurar uma caça às bruxas na Internet são, sem dúvida, males muitíssimo maiores do que a própria circulação de notícias falsas.
Afinal, a veracidade de uma informação sempre pode ser discutida em um livre mercado de ideias, mas a censura de conteúdos, por melhores que se digam ser os propósitos que a embasem, não pode ser outra coisa que não um golpe violento à liberdade de expressão. Não, decerto não é agradável ser vítima de fake news; mas àqueles que forem afetados por notícias falsas restará sempre garantido o direito à indenização pelos danos morais daí decorrentes (art. 5º, X, da Constituição). É claro: sei perfeitamente que uma indenização em dinheiro pode não ser capaz de reparar completamente os danos provocados à honra e à dignidade de alguém; no entanto, quando se fala em restringir a liberdade de expressão, é a própria sobrevivência da democracia e da sociedade livre que se coloca sob risco. De novo, não podemos concordar com um remédio pior do que a doença.
Em matéria de liberdade de expressão, alternativa melhor não há do que o livre mercado de ideias. Justamente por esse motivo, tenho há tempos sustentado a necessidade de preservarmos o que chamo de saudável anarquia no ambiente das redes sociais. Estas, até o momento, permanecem sendo espaços em que as opiniões em geral circulam com bastante facilidade, o que vale inclusive para as que contrariam o “consenso” do establishment cultural dominante: como não celebrar, então, um cenário em que todas as diferentes vozes da sociedade podem ser ouvidas?
Defendamos, pois, com ardor e convicção, nossa liberdade e valorizemos nossas consciências individuais como a instância final do discernimento entre o verdadeiro e o falso. E saibamos, enfim, que, no dia em que aceitarmos a profanação de nossos sagrados direitos individuais e entregarmos a terceiros o direito de pensarem em nosso lugar, nada mesmo nos restará senão viver na mais infame e monstruosa servidão.
(*) Professor de Direito e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais.