Na última semana, uma velha expressão voltou a povoar o debate público: apropriação cultural. Já fazia algum tempo que esse conceito andava desgastado, mas agora, sob uma nova roupagem, ele voltou a ser discutido nas redes sociais, com seus defensores apelando a que, no carnaval, os foliões não se fantasiassem de índios. O argumento era o de que, se usassem fantasias desse tipo, as pessoas ofenderiam (?) os povos indígenas, pois estariam indevidamente a se apropriar da cultura deles.
Não é difícil perceber as falácias presentes nesse discurso. Primeiramente, ele pressupõe algo como uma correlação entre fantasia e ofensa que, na verdade, inexiste. Acaso, quando alguém se fantasia de Cleópatra, está a ofender a famosa rainha egípcia da Antiguidade? É claro que não. Alguém que vai a um baile de carnaval vestido de policial está de algum modo ofendendo os profissionais da segurança pública? De modo algum. Poucas horas antes de escrever este artigo, pude ver um garoto com uma fantasia de Elvis Presley: alguém veria nisso uma ofensa ao rei do rock? De novo, não.
Em segundo lugar, a ideia de que ninguém poderia adotar elementos originários de culturas diversas da sua própria simplesmente não faz sentido. A rigor, se a tal apropriação cultural fosse mesmo proibida, teríamos consequências no mínimo risíveis. Acaso o leitor aprecia sushi? Lamento informar, mas essa iguaria teria de estar interditada a qualquer um que não fosse asiático. Que tal assistir a uma peça de Shakespeare? Sinto muito, mas só os anglo-saxões poderiam fazê-lo. Precisa aprender um idioma estrangeiro? Sorry, mas isso não seria permitido. Ora, como sabemos, culinária, literatura e idioma são partes integrantes das culturas humanas: logo, não poderiam ser indevidamente apropriadas por ninguém. É claro que todos esses exemplos são absurdos; mas é preciso notar que as “proibições” neles contidas seriam puros corolários lógicos do discurso contra a apropriação cultural.
De qualquer modo, a história humana é generosamente recheada de situações em que variadas culturas se encontraram e influenciaram umas às outras. Palavras como abacaxi, jacarandá, arara etc., hoje presentes no Português e no cotidiano de todos nós, foram, um dia, importadas – ou, como querem alguns, apropriadas – do idioma Tupinambá. Segundo se sabe, a álgebra – que todos aprendemos nas aulas de Matemática – surgiu na antiga Babilônia, tendo depois, ao longo dos séculos, sido incorporada ao dia-a-dia das mais variadas sociedades mundo afora. Muitas igrejas católicas em Portugal e na Espanha trazem traços da arquitetura islâmica, refletindo o período em que a Península Ibérica esteve sob o domínio muçulmano. O rock ‘n’ roll, nos Estados Unidos, foi fortemente influenciado pelo blues – surgido entre os negros americanos –, pelo country – mais associado aos brancos – e pelo boogie woogie – modo de tocar piano inventado por músicos de jazz negros. E a lista poderia prosseguir infindavelmente…
Muitas vezes, o que alguns chamariam de apropriação cultural pode expressar até mesmo simpatia ou admiração. Isso ocorreu com a Grande Fantasia Triunfal Sobre o Hino Nacional Brasileiro, de autoria do americano Louis Gottschalk: essa belíssima obra contém variações da música composta por Francisco Manuel da Silva para o nosso Hino Nacional. Mereceria Gottschalk ser acusado de apropriar-se de um de nossos símbolos nacionais? Penso que não – e, aliás, imagino, que devam concordar comigo as lideranças de certo partido de esquerda brasileiro que, por muitos anos, exibiu sistematicamente um trecho da Grande Fantasia em todas as suas inserções televisivas.
O ponto a ser aqui destacado é o seguinte: ao longo de muitos milênios, nada foi tão natural quanto a incorporação de elementos culturais de um povo pelo outro e, até antes do século XXI, ninguém vira nisso qualquer problema sério…
Mas, quando se tenta transformar algo tão corriqueiro como as influências interculturais em um problema público – o que de fato acontece no discurso sobre apropriação cultural, protagonizado pela esquerda “politicamente correta” –, é inevitável a desconfiança de que interesses políticos estejam a se esconder sob o véu de uma ideia pretensamente nobre.
Na verdade, o conceito de apropriação culturalapenas exemplifica uma estratégia política há muito conhecida: a de suscitar grupos rivais dentro de uma sociedade para a obtenção de dividendos políticos. Nessa tática, um grupo é apontado como um inimigoa ser vencido e um partido político se autonomeia o responsável por vencer esse inimigo. Classicamente, os marxistas apelaram à divisão da sociedade entre burguesia e proletariado e se apresentaram como defensores dos proletários; os nazistas, por sua vez, apontaram os judeus como inimigos e chamaram para si a tarefa de destruí-los. Nesse tipo de estratagema, o discurso político é o seguinte: “você tem um inimigo e nós, do partido, defenderemos você contra ele”. No Brasil do final do período petista, esse tipo de discurso assumiu um formato que se convencionou chamar de nós contra eles.
Em tempos passados, o combate à discriminação de pessoas era promovido por meio de referências à unidade nacional. O filme The House I Live In, estrelado por Frank Sinatra em 1945, trazia a seguinte mensagem: não fazia sentido os americanos se discriminarem uns aos outros em razão de raça ou religião, pois brancos e negros, assim como cristãos e judeus, tinham lutado juntos contra os nazistas na Segunda Guerra Mundial. Divisões não tinham propósito, pois havia um só povo, o americano.
Hoje, porém, discursos que se pretendem antidiscriminatórios suscitam não mais a unidade, mas a divisão. Não há mais a antiga exortação a um amor fraternal que supere barreiras divisórias, mas, ao revés, um apelo ao surgimento de conflitos. O que se convencionou chamar de politicamente correto dá voz a essa lógica divisória: cria-se toda uma miríade de grupos identitários – os indivíduos desta ou daquela etnia, deste ou daquele “gênero”, desta ou daquela orientação sexual etc. – e apresenta-se à sociedade um partido ou uma coalizão de partidos como via para a defesa de alguns desses grupos contra aqueles considerados inimigos.
O discurso contra a apropriação cultural surge precisamente dentro dessa lógica divisionista. Quando um branco ou negro se fantasia de indígena, está, na realidade, estabelecendo uma aproximação cultural. Mas essa aproximação, que apela à unidade do povo, revela-se inconveniente quando está em curso uma estratégia cuja base é o estímulo aos conflitos; por esse motivo, a aproximação tem de ser retratada como uma ofensa– uma inversão completa! –, para que os vários grupos componentes de um mesmo povo sejam mantidos separados, como que em guetos conflituais. Longe de proteger os indígenas contra uma ofensa na verdade inexistente, a interdição de fantasias carnavalescas levará apenas a antagonismos forçados entre integrantes do povo brasileiro.
Desejo de coração que a sociedade brasileira não ceda aos falsos encantos de quem pretende dividi-la. E que, neste carnaval, o nosso querido povo – formado “dessa mistura de vozes” de que falou David Nasser em uma famosa pérola de nosso cancioneiro – possa brincar em paz, livre dos desassossegos de ideologias divisionistas. Divirtam-se, brasileiros! E “canta, Brasil”!
(*) Felipe Cola é professor de Direito e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais.