Opinião – A minha infância, a família e os comunistas – Salve, Niemeyer! – por Almir Vilanova*

Mário Flávio - 06.12.2012 às 17:44h

Eles estão na minha vida desde muito cedo – graças à Deus. Nasci em uma família comum, de classe média, que me ensinou o quanto é fundamental tratar bem os amigos da rua e da escola, sejam eles dos guetos ou dos casarões; saudar os vizinhos, cuidar das amizades como plantas: “Regando sempre e sempre preparado para sentir o golpe dos espinhos. Eles existem, mas o perfume da sinceridade sempre será mais importante que a dor”. Assim me disse certa vez a maior poetisa que conheço, Dona Dodôra, minha mãe.

Foi com a família composta principalmente por professores – como a minha mãe e meus dois irmãos mais velhos – que aprendi a dividir os brinquedos com os coleguinhas ou mesmo o lanche que levava para a escola. Cresci em um ambiente assim, simples e generoso. Me encontrar com um livro entre as mãos também foi um estímulo familiar – sem nenhuma pretensão intelectualóide.

Contudo, passados tantos anos, hoje sinto-me feliz ao perceber que a busca pelo conhecimento, que eles tanto estimularam em mim, não era para que eu ‘soubesse’ mais do que meus semelhantes. Mas uma forma de prestar mais atenção ao mundo que se transformava rapidamente à partir da calçada. O conteúdo daqueles escritos raramente tratavam de mundos encantados, bosques com animais falantes, enfim. Aquele conjunto de obras que me olhavam da estante variavam basicamente entre três temas: Filosofia, História e Matemática – infelizmente não consegui me apaixonar pela última categoria. Mas as duas primeiras me têm em seus braços até hoje. Importante sempre guardar na memória e nas ações o pensamento vivo de Sócrates de Atenas: “Só sei que nada sei”.

Foi na relação dos exemplos de conduta dentro de casa e das narrativas sobre a ação dos comunistas diante das injustiças – todas as injustiças – que talvez sem querer fui construindo a minha modesta forma de observar a sociedade, suas complexidades, suas alegrias e tristezas, conquistas e contradições. É evidente que não consegui encontrar respostas para nenhuma das interrogações que parecem pairar no ar, como os traços de Niemeyer. Mas hoje permaneço a me questionar sobre estas mesmas injustiças – todas as injustiças – e isso me parece válido. Não tenho respostas, mas ao menos me faço perguntas. Logo, não estou parado no ar.

Foi em 1986, ainda criança, que vi uns panfletos bonitos que tinham uma foice e um martelo cruzados sobre uma escrivaninha que ficava em um dos quartos da casa. Era o material de pedido de legalização do PCB – na clandestinidade, novamente, desde 1964. O material subversivo pertencia a um dos meus irmãos. Ele havia participado de um grupo de resistência ao regime militar instaurado no Brasil, o Movimento Revolucionário 8 de Outubro, MR-8. Depois, com o esfacelamento dos grupos de esquerda, encontrou no Partido Comunista Brasileiro sua opção de posicionamento diante da vida. Um pouco mais tarde, em 1989, seriam realizadas as primeiras eleições presidenciais no país depois da tenebrosa ditadura que durou 21 invernos.

Eu só tinha 16 verões. Fui ao fórum, tirei o meu título e assisti com indescritível prazer, todas as noites, ao Guia Eleitoral na televisão. Todos lá em casa já haviam decidido em quem votariam. Na verdade, cada um votaria em um nome diferente. Eu, então, quis ouvir todas as candidaturas. Afinal eu precisava “votar consciente”. Esta era a máxima daquele momento. Fui descartando alguns candidatos imediatamente: Fernando Collor, Aureliano Chaves, Afif Domingos, Ronaldo Caiado e Enéas (nunca achei a menor graça nele). Estes não receberiam o meu primeiro voto. Quem me conquistou mesmo foi o guia que só tinha, talvez, 5 minutos. Que orgulho tenho daquele voto. Se pudesse teria guardado a cédula eleitoral – ainda não existiam urnas eletrônicas. Aqueles eram os candidatos daquele mesmo partido, o do panfleto de 3 anos atrás. Inclusive, o mesmo partido de um homem que ouvi falar em 1983 e que também apareceu no guia justificando seu voto àqueles candidatos. Eu estava nas bancas da 5ª série do Colégio Municipal Álvaro Lins.

Assistia aula de Educação Artística, quando a professora disse que um dos maiores desenhistas do Brasil era um arquiteto brilhante e comunista. Seu nome: Oscar Niemeyer. Se por um lado a História tem me ensinado a olhar o retrovisor da vida para entender as conexões com o presente e os apontamentos que miram o futuro, por outro, as lentes da Filosofia me escancaram os olhos para aprender que o pensamento é uma força que quando encontra a condição coletiva das coisas é capaz da superar tiranias, ditaduras, burguesias, arrogâncias, individualismos e outras tolices que o homem um dia inventou.

Portanto, fui influenciado por gente, músicas e palavras impressas que fundamentaram em mim um sentido para estar vivo: A sensação de que a desonestidade, esteja ela no conceito de ‘exploração do homem pelo homem’, desenvolvido por Marx ou ainda na prática sutil de quem ‘não consegue honrar e sustentar uma simples amizade’, como diria Sartre, são elementos que se resumem a noção de que ninguém deve se sentir superior a ninguém. Certamente estes valores me fizeram admirador de todos os revolucionários que passaram pelo mundo e deixaram suas pegadas. Quem sabe assim a humanidade um dia venha a despertar. No caso do camarada arquiteto, seus rastros são os traços que jamais sairão das páginas da História.

Salve, Niemeyer! Você nos ensinou e ainda nos ensinará muito sobre a cordialidade e a humildade. Estas referências estão nas entranhas das obras que você sonhou e que se fizeram matéria pelos braços de inúmeros operários, quase sempre iletrados, que transformaram suas ideias em monumentos de concreto, no solo e no ar, deste planeta tão confuso. Muito obrigado, Camarada.

*Almir Vilanova é jornalista