As cidades, na atual fase da economia mundial, caracterizada por crises sistêmicas cada vez mais próximas uma das outras, são o ativo sobre o qual se voltam os olhos dos gananciosos como meio para a reprodução e acumulação insaciável do capital. Para favorecer grandes corporações (em especial grupos financeiros), mediadas por gestores locais entreguistas e especuladores imobiliários inescrupulosos, os territórios das cidades se tornam objeto da sanha indiscriminada de empreiteiras, incorporadoras e toda sorte de políticos que querem financiar projetos pessoais de manutenção de poder. O professor da Universidade de Nova Iorque, David Harvey e a professora da USP Raquel Rolnik, respectivamente, já vem há alguns anos denunciando esses movimentos em escala global e nacional. Invocar o argumento de autoridade acadêmica é necessário neste momento apenas para mostrar que o risco é real e não é invenção da cabeça de ninguém. Não obstante, o que se quer invocar aqui é principalmente o bom senso para analisar uma proposta indecente recém-pautada no Legislativo municipal. O que se quer aqui é convidar à reflexão. É convocar à ação!
Como se pode cogitar vender o Municipal?!
O homenageado, um grande intelectual, diplomata e imortal da Academia Brasileira de Letras, deve estar se revirando no céu de Caruaru… Vai ver já era o choro dele lá de cima nesses dias recentes de chuva. A história sedimenta em suas páginas um acervo patrimonial, um legado cultural, relevantes feitos sociais por personalidades marcantes. O Álvaro Lins não merecia isso.
Como assim, simplesmente mutilar um dos mais destacados locais de ensino gratuito e de qualidade da cidade?! Será que serão os mesmos os “vencedores” da licitação? Que proposta “mais vantajosa” pode resultar desse certame? Veremos no lugar explodir trocentos andares de especuladores como fizeram, de uma outra forma, com o tradicional colégio Santo Antônio…
Acredito deve ser assunto trancado a sete chaves aquilo o que se pretende fazer com cada um dos metros quadrados mais valorizados desse nosso rincão bendito. E informações valiosas como essa (também foi assim quando da venda da FUNDAC de Caruaru pelo governo estadual) só gente que está muito próximo da gestão tem acesso. Com o terreno para a transferência da Feira da Sulanca não foi diferente: Estavam escolhidas previamente as pessoas para vender (disseram que até foi abaixo do preço de mercado e era um favorecimento ao Município) e todas as que iriam comprar (a um preço acima do possível?).
Por que primeiro não se considera consultar as pessoas que serão afetadas por essas ações, bem como os conselhos de controle social, o da Educação, por exemplo? Por que o prefeito de um município do porte do nosso ainda vem com alegações que para financiar investimentos na Educação seria preciso vender um colégio, que lógica é essa, meu Deus?!
Alienar um terreno tão bem localizado, em um bairro tão nobre, mandando projeto de lei em recesso parlamentar e nas férias escolares? Vai ver a pressa é pra evitar pressão. Tal terreno bem poderia servir de centro para treinamentos de várias modalidades esportivas. Havia um campo de futebol e pistas de atletismo, e espaço para fazer mais equipamentos. Por que se passou alvenaria fechando o acesso e obstruindo o uso pelos estudantes e professores? Talvez Caruaru já tivesse revelado até atletas olímpicos se naquele terreno pudéssemos ter aprendido a superar limites educacionais e físicos. Talvez ali pudéssemos ter uma autarquia municipal de ensino superior com cursos para o povo aprender história e belas artes. Tantas destinações possíveis e uma cidade inteira a ter de enfrentar “os amigos do rei” por mais um ano. Será que dá tempo de resistir?
Vem à imaginação como que um cartunista (se eu tivesse o dom de desenhar bem, faria isso) poderia ilustrar nossa cidade-empresa: por trás de um balcão mostrando nas prateleiras uma Feira da Sulanca ali, campo do Central acolá, e agora vendendo escolas aos compradores de pechinchas. O futuro alheio não é mercadoria que pode entrar nessa promoção não, vendedor!
Quando se privatiza uma área pública (desafetação de área de um equipamento educacional, principalmente!), não importa o preço arrecadado ou se é de frente para o oceano ou com marina no espelho d’água, ou mesmo no meio do mato, é exigível o mínimo de respeito com os cidadãos. E nem o futuro nem a memória de nossa gente se pode negociar sob pena de perdermos para o “progresso” o que nos torna gente.
Uma cidade é sempre o resultado de esforços positivos e coletivos de várias gerações acumulando vivências, trocas, constituindo seus valores, e não se desfazendo de seus referenciais. Precisamos abandonar essa lógica de cidade-empresa para beneficiar os amigos e cidade-crise para prejudicar os habitantes. Precisamos ocupar o Municipal, senão o próprio povo e o Município de Caruaru serão vendidos a quem der mais!
*Sandro Vila Nova é servidor público e estudou no Colégio Municipal Álvaro Lins. Lá aprendeu que o público é de tod@s e não de uns poucos.