A vida em sociedade é repleta de desafios, tentar unir milhares ou até milhões de pessoas para viver em comunidade é uma tarefa hercúlea. Já que são tantos interesses divergentes e tantas contradições a serem superadas cotidianamente, a metáfora mais adequada seria a de enxugar gelo. Uma tarefa sempre inconclusa, que exige continuamente a arte do diálogo e criação de canais de participação para mediar os conflitos.
Isso foi exemplificado com as cenas de batalhas campais protagonizadas ao longo da semana nas principais cidades do país. De um lado tínhamos jovens, mobilizados contra o aumento no preço das passagens de ônibus, imbuídos do não conformismo e dos espíritos de mudança, rebeldia e de contestação, tão próprias da idade. E do outro lado uma polícia, forjada ao longo das décadas para ser o braço armado do Estado, acostumada mais a usar da força do que da inteligência, para superar os impasses e disputas.
Os protestos foram tratados na mídia de formas distintas, em alguns veículos foi considerado o sinal de uma sociedade mais politizada, que exige maior participação social e controle do Estado pelo cidadão. Em outros meios foi taxado de vandalismo, terrorismo e até mesmo anarquia, com alguns editoriais cobrando uma ação mais enérgica pelo Estado para debelar o protesto.
Nas análises desses eventos em específico temos que dar a César o que é de César, e dar aos episódios a sua real dimensão, sem endeusá-lo ou demonizá-lo. As principais críticas ao movimento foram em relação à depredação dos ônibus, o que para muitos justificava a repressão e o enquadramento de todos os participantes como vândalos. É evidente que existiram participantes que praticaram atos de vandalismo, e esses têm que ser responsabilizados, mas isso não significa dizer que todos os que protestavam eram vândalos, isso foge ao bom senso. No Brasil, parece que revoluções e conflitos sociais só são bons e elogiados quando ocorrem em outros países, além de nossas fronteiras, como no caso dos protestos no mundo muçulmano: a Primavera Árabe.
Durante a ditadura militar, promulgou-se o AI5 com esse raciocínio viciado, existiam manifestações pacíficas contra o regime, como a Marcha dos Cem Mil, porém uma pequena parcela dos opositores optou pela luta armada, pela guerrilha urbana. Utilizando-se de uma generalização perversa, pela qual qualquer manifestante era guerrilheiro, os generais aproveitaram os atos dessa minoria para calar a maioria por mais de vinte e um anos.
Os conflitos ora em curso são consequências diretas da nossa história recente, vivemos numa sociedade que passou a maior parte do século XX sobre a égide de regimes autoritários, com curtos momentos de democracia. Estamos ainda engatinhando para construir uma sociedade realmente plural e democrática, com cidadãos, independente de raça, credo ou cor, exercendo plenamente os seus direitos e deveres.
Essa cultura do arbítrio, infelizmente, ainda está arraigada em nossa prática política. Com governantes, acostumados a administrar uma sociedade reprimida e atemorizada, na qual uma simples discordância era e é tratada como ato de subversão, de oposição e que tem de ser calada a qualquer preço, via cooptação preferencialmente ou pela força.
Estamos numa democracia, mas não temos governos totalmente democráticos, pois não existem canais efetivos de diálogos com a sociedade, já que a participação popular é sistematicamente desestimulada em todos os níveis de Governo. Os chamados orçamentos participativos, as plenárias e as conferências públicas, que são realizadas por todo território nacional, em sua maioria, são “para inglês ver”. Afinal, muitas vezes o percentual do orçamento disponibilizado é ínfimo, e os delegados das conferências e dos orçamentos participativos são, geralmente, membros da base do governo. E o que era para ser um canal direto entre população e governo, termina sendo aparelhado para servir aos interesses dos governantes.
Junte-se a isso as necessidades prementes da população pelos agentes públicos, que repetidamente negligenciam o clamor das ruas. Como não existem espaços para debelar os impasses de forma democrática e preventiva, as tensões se acumulam, fermentam e se agigantam, com os movimentos sociais das mais diferentes matizes e objetivos sendo amalgamados pela insatisfação e perdendo identidades, virando uma verdadeira massa crítica, pronta para eclodir.
O problema por trás dessa mutação, de movimento par uma massa amorfa e instável, é que com os movimentos sociais é possível o diálogo, há lideranças que intermedeiam as negociações entre a base popular e o governo. Mas quando por descaso não se negocia, esses movimentos se fundem e viram uma “massa popular”, que é mais conduzida pelas paixões do que pela razão. Isso é a receita completa para o desastre, já que a passionalidade é uma péssima conselheira.
Os atos e os fatos revelaram o quanto ainda temos que evoluir e aperfeiçoar as instituições sociais, para consolidarmos a democracia em nosso país. Esperamos que desses movimentos não restem apenas os restos da batalha jogados pelas ruas, mas que usemos esse momento para discutir a relação entre sociedade e o Estado, buscando assim construir um país realmente democrático, com as questões sociais deixando de ser caso de polícia.
*Mário Benning é professor e analista político