Expressão utilizada no meio político como sinônimo de exaltação a amizade, às alianças e latu sensu a base da governabilidade, “para os amigos tudo e para os inimigos os rigores da lei” indiscutivelmente é um instrumento de convencimento e de intimidação no nosso país.
A esdrúxula sentença em questão, por muito tempo, soou como um mantra para alguns detentotes do poder, largamente ouvida e acatada pela sociedade como parte inerente a um conjunto de atributos de quem exerce cargo público.
Há quem atribua a origem desta frase a Nicolau Maquiavel (“aos amigos os favores, aos inimigos a lei”) e até a Getúlio Vargas, entre outros, no entanto a origem real é incerta em face da ausência de um consenso entre os historiadores.
Mas passando a refletir sobre os efeitos deste artifício impositivo, indaga-se: se aos inimigos ficam os rigores da lei, então aos amigos é dada a possibilidade de não cumprir a lei?
Em linhas gerais, uma lei é um preceito genérico, abstrado e aplicável a todos, emitido por autoridade competente – o Poder Legislativo – que visa regular o comportamento dos cidadãos e instituições (BOBBIO, 1999). Sem adentrar mais profundamente aos conceitos técnicos de cada verbete, temos o adágio popular que “a Lei é para todos”.
Então, se a lei é para todos, como evitar aplicá-la nos seus rigores aos amigos, destinando-a como uma espécie de punição aos inimigos? Parece um paradoxo que um preceito normativo geral só se aplique – na discordância – a determinado grupo.
É de senso comum que o povo brasileiro tem uma inclinação sentimental mesclada à hospitalidade, à credulidade, irreverência e a expansibidade emocional, constituindo uma verdadeira nação de braços abertos, que trata muito bem seu compatriota e àquele que aqui visita.
Baseado nas premissas acima dispostas, surge na literatura nacional a figura do “homem cordial”, no magistério de Sérgio Buarque de Holanda, na obra Raízes do Brasil (HOLANDA, 1995). O autor sugere que a figura do brasileiro – lato sensu – esse conjunto de sentimentos, dentre outros, o conduz a imprimir uma espécie de predominância da sua vida privada (e familiar) nas suas relações com o Estado, levando-o a uma dificuldade de estabelecer os limites entre o público e o privado.
O patrimonialismo, o coronelismo, o clientelismo e o nepotismo são exemplos da personalidade do “homem cordial”, que quando investido no poder, tem nele a extensão da sua visão privada e sobre ele impõe a sua vontade pessoal, distante de uma forma isenta e republicana de atuar que se espera daquele que se encontra no exercício de um cargo público.
Ainda sobre aplicação das leis, encontramos o Princípio da Igualdade previsto no art. 5o. da Constituição Federal de 1988, que em suma, dita que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
A norma constitucional elegeu a igualdade entre pessoas e elevou essa condição a altura de um princípio, mesmo que a doutrina pátria tenha aperfeiçoado o conceito para explicar a existência de uma igualdade proporcional, diante de não poder se tratar igualmente situações provenientes de fatos desiguais, remetendo a uma interpretação de “dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades” (NERY JUNIOR, 1999, p. 42).
Sem o intuito de estabelecer polêmica na interpretação do Princípio da Igualdade, utilizaremos como exemplo o acesso ao cargo de juiz de direito, que é facultado a todos igualmente mediante aprovação em concurso público aberto, desde que o candidato possua um diploma da graduação em Direito como requisito básico da carreira jurídica. Em suma, todos são iguais, mas para determinado ofício, reclama-se uma especificidade.
Ou seja, estamos tratando desigualmente os desiguais na medida das suas desigualdades, sem cometer nenhuma ilegalidade e com total distanciamento do conceito do “homem cordial”.
Com essas breves considerações tentamos estimular o debate sobre uma prática ainda usada na nossa sociedade, demonstrando a total ilegalidade de uma postura lamentável e fundada numa herança de povo colonizado, totalmente contrária aos Princípios Constitucionais da Moralidade, Legalidade, Impessoalidade, e, de uma forma geral, ao nosso Ordenamento Jurídico Pátrio.
Referências bibliográficas:
- BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora UNB, 1999;
- HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1995;
- NERY JÚNIOR, Nélson. Princípios do processo civil à luz da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
- Constituição da República Federativa do Brasil, disponível em < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm > acesso em 25.10.2023, 19:30.
Angelo Dimitre Bezerra Almeida da Silva é graduado em Direito, advogado, especialista em prática do processo, mestre em gestão pública, Procurador Geral do Município de Caruaru-PE e Líder MLG