Opinião – Necessidade da filtragem constitucional do Direito Eleitoral – por Maria Luisa Lacerda*

Mário Flávio - 07.08.2019 às 18:52h

Todo estudante de direito aprende logo nas cadeiras iniciais de Direito Constitucional, que a Constituição além de ser um sistema em si -com sua ordem, unidade e harmonia- é um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Tal fenômeno, chamado de filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição. 

​Nas inúmeras décadas, inúmeros ramos do direito foram constitucionalizados. Entretanto, o direito eleitoral, assim como alguns outros ramos, permanece alheio à constitucionalização. Vê-se que grande parcela da legislação eleitoral e das decisões da Justiça Eleitoral, limitam indevidamente o exercício do direito fundamental de máxima estatura em qualquer democracia constitucional – a liberdade de expressão. 

​Essa gama de limitações é algo bastante contraditório,haja vista termos um processo eleitoral que se caracteriza como um processo participativo, em que candidatos, cidadãos, partidos e meios de comunicação se engajam em um debate público, indispensável para o processo de tomada de decisão de voto e de formação da vontade coletiva. 

​Inúmeros episódios que parecem fazer parte de um passado autoritário ainda marcam as recentes eleições brasileiras: decisão de magistrada eleitoral de Iguaba Grande (RJ), que resolveu restringir as cores das roupas dos eleitores e mesários, somente permitindo o ingresso nas seções de votos daqueles que portassem vestes pretas, brancas ou cinzas; decisão que proibiu um site jornalístico em Cárceres (MT) de publicar quaisquer matérias sobre as eleições no município durante todo o pleito; em Palmas (TO), policiais militares armados com fuzis impediram a distribuição de revista que trazia reportagem prejudicial ao então governador que disputava a reeleição, sem que houvesse comando judicial autorizador da operação etc. 

​Sem contar com as restrições indevidas à liberdade de expressão contidas na legislação eleitoral: impossibilidade de veicular propaganda eleitoral em outdoor; impossibilidade de utilização do telemarketing; impossibilidade de veicular mais de 10 anúncios na imprensa escrita; impossibilidade de distribuir adesivos com dimensão superior a 50 x 40 cm; impossibilidade de veicular nos bens particulares propaganda em dimensão superior a 0,5 m² etc…

​Fica evidente que o direito eleitoral não confere à liberdade de expressão a sua devida importância, seja porque a ampla e robusta proteção constitucional conferida à liberdade de expressão ainda não ganhou vida plena fora do “papel”, seja porque a dogmática do direito eleitoral padece de um subdesenvolvimento teórico. 

​Aline Osório, na obra Direito Eleitoral e Liberdade de expressão, além de identificar e apresentar com maestria a cultura brasileira de desprezo pelas liberdades comunicativas, sobretudo quando seu exercício se volta contra autoridades e detentores do poder, defende, também com maestria, a proteção especial aos discursos políticos e às críticas sobre agentes públicos e autoridades estatais, inclusive quando ofensivas e exaltadas. 

​Afinal, é imperioso rememorar que a liberdade de expressão é garantia da democracia, não é garantia de verdade ou de justiça. Como muito bem disse o Min. Barroso no prefácio da obra Direito Eleitoral e Liberdade de expressão: “defender a liberdade de expressão pode significar ter de conviver com a injustiça e até mesmo com a inverdade. É o preço”.

​Isso deve ser válido para candidatos e políticos em geral. Quem não gosta de crítica, não deve optar pelo espaço público. Aqui, cabem as lições de George Orwell: “se a liberdade significa alguma coisa, será sobretudo o direito de dizer às outras pessoas o que elas não querem ouvir”.

​Portanto, é necessário dar o primeiro passo em busca de um movimento mais amplo de constitucionalização do Direito Eleitoral. É dizer: de reinterpretação de toda a disciplina de modo a realizar os reais valores consagrados na Constituição da República de 1988, sobretudo à luz da liberdade de expressão. A efetividade das eleições como mecanismo de seleção de representantes e o próprio funcionamento do regime democrático são conditio sine qua non de um ambiente que permita e favoreça a livre manifestação e circulação de ideias.

*Maria Luisa de Medeiros Lacerda. Advogada. Pós-graduada em Direito Eleitoral pela Escola Judiciária Eleitoral de Pernambuco.