O sentido histórico, às vezes, carece de sentido. Por isso, parece prematuro e, sobretudo, arriscado, tentar apontar qual a natureza e o alcance dos movimentos sociais em rede, apoiados no uso da internet e nas redes sociais, em Madri em 2004, no Irã em 2009, ou, agora, no Brasil. A sensação é de estarmos no olho de um furacão. Tudo está sendo varrido, mas não podemos saber a dimensão das mudanças que se estão a produzir. Porém, há pelo menos dois motivos para empreender a análise: primeiro, nossa humana mente sempre exige uma explicação para tudo o que se apresenta aos nossos sentidos; segundo, melhor correr o risco do errar, a arriscar-se a perder o bonde da história.
Então, o que se vê? Vê-se a descrença nos políticos e na política, a crise do sistema representativo, a indignação perante todas as formas de injustiça, a desconfiança diante de todas as formas de poder, a suspeita quanto à atuação dos meios de comunicação. As pessoas não se sentem reconhecidas, respeitadas, nem representadas pelo que se convencionou chamar de “sistema”, essa entidade sem face e sem corpo, mas que tem olhos que enxergam e braços que agarram a todos nós. Há uma desconfiança generalizada. E, sem confiança, o contrato social se dissolve e a sociedade desaparece.
As redes sociais possibilitaram a união de todos os humilhados do mundo. A internet é um espaço eminentemente de autonomia, fora do controle do governo e das corporações que sempre monopolizaram os canais de comunicação. Os relatos de insatisfações e indignações livremente compartilhados transformam o medo, sentimento paralisante, em ira, que mobiliza. As mobilizações fortalecem as pessoas e lhes dá esperança. Sem a internet e as redes sociais os movimentos sociais século XXI não seriam possíveis. Mas esses sentimentos conectados não teriam poder transformador se não saíssem do mundo virtual para a vida real. Por isso a invasão das ruas e dos prédios públicos. Já que essas pessoas não têm acesso aos espaços institucionais de debate político, tomam as ruas, como se quisessem lembrar aos poderosos que a cidade é de todos os cidadãos.
O que querem essas pessoas que se manifestam? Se há uma mensagem clara de insatisfação com todo um sistema de poder, não há, porém, uma pauta específica de reivindicações. Há muitos nãos e poucos sins. As pessoas não aceitam mais o que está aí, mais ainda não sabem o que por no lugar. O movimento é difuso, sem pauta, sem líderes. E isso é, ao mesmo tempo, sua força e sua fraqueza. Fraqueza porque, sem uma definição clara do que está sendo almejado, as respostas obtidas na esfera política vão nos mais diversos sentidos, muitas vezes contraditórios. Força porque, sem pautas, ideologias ou líderes, o movimento se abre a todas as demandas e a todas as pessoas.
Se eu pudesse traduzir o que dizem essas pessoas, diria que querem um outro mundo, muito diferente deste nosso injusto mundo, que nos faz reféns das corporações financeiras. Financeiras porque financiam: os políticos, as empresas de comunicação, os países. Corporações porque com todos os seus tentáculos podem cobrar muito caro por isso. E para que essa utopia seja realizável, exige-se uma nova forma de fazer política. Não querem mais dar cheque em branco aos seus representantes eleitos. Eles já não os representam. Querem ser ouvidos. Querem ser atendidos. Não aceitam mais o governante onisciente, que toma as decisões sozinho porque sabe o que o povo quer. Descobriram agora que o político que acha que sabe o que o povo quer, tem a certeza de que o povo não sabe o que quer.
Os políticos comprometidos com as causas populares não devem se sentir acuados. Devem fazer o possível para captar a energia desse movimento, retirando as pedras que represam as ondas de mudança. Uma por uma, sem temores, sem rancores. Abrindo-se definitivamente à participação social, governando com o povo, estabelecendo canais institucionais e não-institucionais de diálogo, utilizando-se fortemente desse grande instrumento de comunicação do nosso tempo, a internet.
Reconquistar a confiança perdida no sistema político não será tarefa fácil. Mas não é só uma questão de confiança. As pessoas buscam outros ambientes para formular suas demandas políticas porque a via institucional está, sim, desacreditada. É muito mais provável que as pessoas obtenham respostas efetivas às suas demandas fazendo denúncias no rádio ou na TV, ou mediante manifestações de massa, que solicitando diretamente ao poder público. E não é lógico pensar que isso é coisa de oposicionista. Ninguém buscaria o caminho mais difícil se fosse atendido institucionalmente. Mas acontece, também, que os poderes públicos ainda não conseguiram estabelecer um a comunicação efetiva com a sociedade através da internet e das redes sociais. E isso é fundamental se se quer uma gestão realmente participativa. A internet e as redes sociais são, queiramos ou não, a forma de comunicação mais efetiva desse século, especialmente entre os jovens. Como dialogar com a sociedade sem navegar. Navegar é preciso…
O governante deve, ainda, intensificar o processo de transparência pública: portais da transparência com informações claras e atualizadas, fóruns permanentes de prestação de contas, conferências públicas, fortalecimento dos conselhos, ouvidorias, etc. Deve-se tentar superar de uma vez por todas a nefasta cultura da caixa preta, as paredes da administração pública, como o seu telhado, devem ser de vidro, vidro translúcido.
Mas não podemos ser ingênuos ou superficiais. Não adiantará nada ouvir a população e não poder atender suas reivindicações. Isso soará hipócrita e só aumentará a desconfiança. É urgente a discussão das formas de financiamento das políticas públicas. Ficou fora da pauta dos manifestantes o enorme comprometimento das receitas públicas com pagamento da dívida, a iníqua repartição de receitas entre os entes federativos, que relega os Municípios à mendicância – o tal do pacto federativo, e a necessidade de reforma desse sistema tributário extremamente regressivo, que faz com que os mais pobres paguem mais tributos que os mais ricos.
Pensando agora que estamos discutindo participação popular e políticas públicas prioritárias, e na cobrança que se exercerá sobre os governantes, especialmente sobre os Prefeitos, sem discutirmos as formas de financiamento dessas políticas, lembrei de um verso de Djavan: “sabe lá, o que é não ter e ter que ter prá dar, sabe lá…”
*Tony Galvão é Controlador Geral do Município de Caruaru