A franquia americana de filmes de terror e ação, The Purge (chamada de Uma Noite de Crime no Brasil), é composta por quatro filmes e uma série de televisão. A história se passa nos Estados Unidos, em um futuro não muito distante, onde todos os crimes, incluindo homicídio, são permitidos durante 12 horas em um dia específico do ano, chamado de “dia da purificação”.
De acordo com o filme, essa política foi criada para permitir que as pessoas extravasem sua raiva acumulada, diminuindo os crimes durante o restante do ano. O resultado é positivo, os crimes diminuem bastante, a economia vai bem e o país prospera. Entretanto, essa política esconde um ingrediente cruel, que será melhor explorado no segundo filme da franquia.
O primeiro filme se passa em um bairro rico, mais especificamente com uma família cujo patriarca ganha dinheiro vendendo equipamentos de segurança para as pessoas se protegerem durante a noite de purificação.
Nessa noite, seu filho desativa os equipamentos de segurança para ajudar um morador de rua a sobreviver à noite de expurgo. Para saber mais sobre o primeiro filme, é necessário assistir, pois não daremos spoilers.
No segundo filme da franquia The Purge, a crítica social é ainda mais explícita. A história conta com diversos personagens, mas o principal é Leo, interpretado por Frank Grillo, que deseja usar a noite do expurgo para se vingar de um homem que atropelou e matou seu filho, mas foi inocentado.
No entanto, durante sua busca por vingança, ele presencia uma situação de injustiça e intervém para salvar duas mulheres que estavam sendo retiradas de suas casas à força.
Essa intervenção leva Leo a descobrir algo perturbador: o carro utilizado pelos agressores é na verdade do governo dos Estados Unidos, cuja função máxima na noite do expurgo é exterminar os mais pobres. A política de expurgo é centralizada no extermínio dos pobres, que são os mais vulneráveis à violência urbana e não possuem recursos para se proteger.
Eles são os que mais necessitam da ajuda do governo em áreas como saúde, previdência, educação e demais serviços públicos.
Os mais pobres também são os que mais precisam de habitações populares, o que é o caso das duas mulheres que Leo salvou. Ao matar essas pessoas vulneráveis, os gastos sociais não são mais necessários, pois os que mais precisam de auxílio do Estado simplesmente deixam de existir.
Em resumo, o lema dos “novos pais fundadores” no filme é: “Não há pobreza nem fome se eu matar quem é pobre e/ou tem fome”. O terceiro filme da franquia, intitulado de “ano da eleição”, se passa em um ano eleitoral, onde um dos candidatos à presidência é um forte opositor da lei do expurgo, já que teve sua família toda assassinada em uma dessas noites.
Já o quarto filme mostra como tudo começou quando iniciaram a implantação dessa política, mostra principalmente os problemas enfrentados pelos formuladores da política, uma vez que as pessoas não estavam agindo conforme o planejado, e, para que tudo corresse conforme desejavam, precisaram contratar mercenários para fazer o trabalho sujo.
Mas afinal, o que esses filmes têm a ver com o Brasil? Apesar de não ser tão explícito quanto na série de filmes, existem diversas políticas de extermínio no país. Uma delas é a nossa política de guerra às drogas, que já dura mais de 80 anos. Apesar da falta de sucesso na luta contra as drogas, essa política tem uma vítima clara: os pobres. Enquanto jovens em bairros ricos podem consumir suas drogas sem serem importunados, os moradores das favelas são os principais alvos das operações policiais nos morros. Não é raro que sejam atingidos por “balas perdidas”, evidenciando a violência a que são submetidos em nome dessa política belicosa.
A guerra às drogas no Brasil afeta principalmente os mais pobres, que vivem em bairros negligenciados pelo poder público e são vulneráveis à violência dos traficantes. Além da violência causada pela proibição das drogas, que contribui para cerca de 30% dos homicídios no país, há um efeito danoso na mentalidade das pessoas. Muitas vezes, quando alguém que tinha envolvimento com drogas é assassinado, a sociedade tende a justificar a morte com frases como “ele escolheu esse caminho” ou perguntando se a pessoa tinha envolvimento com drogas. Isso sugere que comprar, vender ou consumir drogas é suficiente para justificar a morte de alguém, e infelizmente, muitos aceitam isso como verdade.
Mas por que a guerra às drogas continua a existir? Essa política não tem sentido do ponto de vista moral ou jurídico. Não há nenhum argumento racional que legitime uma guerra apenas porque as pessoas querem consumir drogas. Do ponto de vista jurídico, a guerra contra as drogas é ainda menos justificável. O direito penal tem como função proteger os bens jurídicos fundamentais, como a vida, a liberdade e a propriedade. No entanto, no caso das drogas, é difícil identificar qual bem jurídico está sendo violado pelo consumo de entorpecentes. Embora drogas possam prejudicar a saúde, isso não pode ser considerado um crime, pois o princípio da Alteridade do direito penal estabelece que ninguém deve ser punido por uma autolesão.
Então, por que a venda de algo cujo consumo não é crime é considerada crime? Tratar as drogas como caso de segurança pública não faz sentido, como foi visto nas linhas anteriores. Em resumo, é necessário realizar uma discussão ampla e séria sobre o tema e revisar a política relacionada às drogas. Não podemos acreditar que soluções para problemas complexos são fáceis. Como mencionado anteriormente, cerca de 30% dos homicídios no Brasil estão de alguma forma relacionados às drogas, o que significa que em média 12 mil pessoas são assassinadas anualmente devido a esse problema. Por dia, isso representa aproximadamente 32 mortes no país, resultado de uma política estúpida de proibição e enfrentamento das drogas. É urgente mudar os rumos dessa política para que pessoas não continuem morrendo simplesmente por comprarem ou venderem drogas. A menos que concordemos que essas pessoas mereçam morrer, o que nos tornaria semelhantes aos ‘novos pais fundadores’ do filme “Uma Noite de Crime”.
*Rik Daniel é Bacharel em Sistemas de Informação e Graduando em Economia
