Durante a Idade Média as feiras dinamizaram a economia na Europa e permitiram a emersão do mundo contemporâneo. Ao longo das rotas terrestres, surgiam os espaços de trocas, que irrigavam as cidades europeias com o capital obtido pelas suas transações financeiras. Isso provocou a urbanização do mundo medieval, a mobilidade social e o fim do feudalismo.
É inegável esse paralelo com a história de Caruaru, estrategicamente colocada no cruzamento das principais estradas pernambucanas, a cidade consolidou-se como um entreposto comercial para a região do agreste. Foi tão marcante esse papel que ele foi eternizado na composição de Onildo Almeida, na voz de Luiz Gonzaga, o lugar que tem de tudo que há no mundo.
Porém de um trunfo para o município a feira virou um estorvo, passando de heroína a vilã no imaginário do cidadão comum. O motivo principal para essa metamorfose são os percalços provocados pela Sulanca, no já conturbado trânsito municipal. Paralisando amplas áreas da cidade durante e nos dias anteriores às feiras.
A feira cresceu e está confinada num espaço que não mais a comporta, vem paulatinamente sendo superada e aniquilada, pelas feiras de Toritama e Santa Cruz do Capibaribe. Em relação a isso, discute-se há mais de uma década a sua transferência para as margens da BR 104, como forma de recuperá-la.
A discussão sobre a transferência da feira já é matéria vencida, há muito tempo. Não há mais motivo para insistir em debater se a sulanca sai ou se fica. Sua permanência no centro será a sua sentença de morte. Qualquer pessoa que acompanhe as discussões sobre o urbano sabe o quanto os centros das cidades são esvaziados pela expansão da mancha urbana.
O que se impõe no momento é discutir o modelo de transferência, e paralelamente a isso que medidas efetivas serão tomadas para evitar a já visível degradação da área central e proceder a sua revitalização urgente. Não esperar que se atinja o grau de decadência do centro do Recife e demais centros urbanos mundo afora.
Outro ponto é: para que tipo de estrutura a feira migrará? E quem gerirá a atividade pelos próximos anos, ou décadas? A questão da transferência da Sulanca não pode ser resumida apenas à estética, onde é mais “bonitinho” colocá-la, ou de que lado da rodovia deve ser alocada. Essas abordagens só exemplificam a superficialidade dos debates travados até o momento, mas deve-se analisar como preservar o seu caráter dinâmico e ramificado, o elo final de uma cadeia produtiva que se esparrama por toda Caruaru.
De maneira imediata, o que a população sentirá com a mudança será a fluidez do trânsito ou a reorganização da feira, a sua racionalização. Com isso a maioria concluirá que o pior foi superado e tudo está resolvido. Porém esse aspecto é apenas a ponta do iceberg, temos grandes riscos envolvidos e potenciais ameaças ao conteúdo da feira, a sua essência, o de ser uma atividade pública, acessível e democrática.
O modelo escolhido pode ser uma PPP, Parceria Público Privada, nos moldes de um shopping, o modelo mais comentado na cidade. Arrendando a grife “feira da sulanca” aos investidores por um longo período de tempo, uma concessão de prazo dilatado. Nesse caso, correremos o risco de só sentir o impacto negativo quando talvez for tarde demais.
Afinal o ciclo de mobilidade social que marca a Feira será perdido. Atualmente o pequeno feirante consegue com pouco investimento inserir-se na atividade, vai reinvestindo seu lucro na sua produção e consumindo os insumos no comércio local, dinamizando a economia da cidade, nos mais diversos setores. Porém, se a gestão da Feira passar diretamente para as mãos da iniciativa privada, sem nenhuma contrapartida social, sem nenhuma obrigação como preservação desses elementos, ela lentamente excluirá os pequenos comerciantes e fechará as portas aos neófitos na atividade.
Já que os mesmos não poderão arcar com os custos do arrendamento dos espaços nos centros de compra, na prática elitizaríamos a sulanca e favoreceríamos a concentração de renda na mão dos grandes comerciantes. Para passar manteiga na venta do gato, colocaríamos os excluídos nos estacionamentos ou porões, que por não oferecerem conforto, são evitados pelo grosso dos compradores. Esses problemas já ocorrem em Santa Cruz do Capibaribe e poderão ser replicados aqui.
Se isso ocorrer, teremos ido de encontro às principais discussões sobre desenvolvimento endógeno travadas em escala mundial. Nós já temos consolidada uma atividade que várias nações investem grandes somas para tentar implantar, uma cadeia produtiva de base local. Todavia corremos o risco de por abaixo por imprudência, por falta de compromisso social e de uma visão econômica ampla, uma atividade que impacta na vida de milhares pessoas diretamente e comprometendo seriamente o futuro da cidade.
Estamos agora num daqueles momentos ímpares, as chamadas encruzilhadas da história, onde existem várias possibilidades de decisões que repercutirão fortemente sobre os destinos da coletividade e nas reputações dos atores políticos nas próximas gerações. Qualquer decisão tomada nos próximos dias será julgada pelas areias do tempo, que arrastarão os envolvidos à lama por terem cedido às pressões financeiras. ou içados aos píncaros da admiração coletiva pelo seu espírito público. Cada um dos envolvidos nessa discussão está, nesse momento, escolhendo com suas ações o seu lugar na história caruaruense.
*Mário Benning é professor e analista político