Em filosofia, costuma-se chamar ética – do grego, ethos: costume – ao estudo da moral e estética – também do grego, aisthesis: sensação – ao estudo da beleza. A ética tem em consideração os comportamentos humanos, valorando-os em bonse maus – ou éticos e antiéticos –; a estética, por sua vez, se debruça sobre tudo aquilo que nos impressiona os sentidos, tratando dos conceitos de belo e feio.
A distinção entre ética e estética é importante no Brasil de hoje, em que alguns acusam o Presidente Jair Bolsonaro de não se comportar de acordo com o “decoro” inerente ao cargo que ocupa. Ocorre que, em muitas das críticas feitas ao Presidente, o que se dá na verdade é uma confusão entre juízos éticos e estéticos, que exporei a seguir.
Desde o início do governo, os opositores do Presidente o atacam dizendo, por exemplo, que ele agride a imprensa, a qual, porém, enquanto instituição, segue fazendo livremente seu trabalho. Deveras, os veículos de comunicação têm tido ampla liberdade para criticar o governo e seu chefe, sem que jamais o Presidente houvesse sugerisse, por exemplo, um “controle social da mídia” – eufemismo para censura – como, não faz muito tempo, andou propondo um certo partido de esquerda que governou o Brasil. Realmente, a imprensa tem dito o que bem entende sobre Bolsonaro e este jamais tentou usar do poder estatal para contê-la.
Outros afirmam que o Presidente não respeitaria as “instituições democráticas”, por não dialogar com o Congresso Nacional e com a classe política em geral. Aqui, há uma clara deturpação da realidade: de fato, são inerentes à democracia a construção de consensos e as negociações entre os poderes Executivo e Legislativo. Nesse sentido, em qualquer democracia sadia, entabulam-se acordos sobre proposições legislativas – por exemplo, modificando-se o teor de seus textos para que se consiga sua aprovação –, vetam-se dispositivos legais como contrapartida para que tais ou quais projetos sejam aprovados etc.. Sim, esse tipo de negociação é comum aos regimes democráticos e não cessou de ocorrer no Brasil: considere-se que a aprovação da reforma da previdência, por exemplo, se deu por meio de uma interação – ainda que às vezes espinhosa – entre o governo e o Congresso, e jamais existiu qualquer tentativa do Executivo de impedir a atuação do Legislativo. (Muito pelo contrário, aliás, partiram justamente do Legislativo algumas manobras orientadas a reduzir o espaço de ação do Executivo, como na tentativa da Câmara dos Deputados de derrubar o veto presidencial ao orçamento impositivo).
O governo Bolsonaro, no entanto, realmente interrompeu uma prática absolutamente comum em outros tempos: a do loteamento de cargos públicos com finalidades escusas. Anteriormente, em nome do que se chamava governabilidade, ministérios e secretarias eram generosamente distribuídos entre os partidos políticos que compunham a base governamental e tornou-se notório no Brasil que o fatiamento da máquina pública não guardava qualquer relação com as negociações inerentes à política democrática: na verdade, o que se repartia eram os gordíssimos orçamentos das pastas governamentais, a fim de possibilitar que desvios de recursos enchessem bolsos de políticos e fundos de campanha. Essa prática refletia mero patrimonialismo na formação do governo e, de fato, Bolsonaro, até o momento, não recorreu a esse expediente: escalou o Ministério que melhor lhe aprouve, tendo sido criticado por muitos justamente por não compor uma base aliada.
Em verdade, até pouco tempo atrás, o noticiário político acabava por se confundir com o policial: acompanhar a política brasileira significava, pura e simplesmente, inteirar-se dos mais recentes escândalos de corrupção. As notícias jornalísticas denunciavam, em geral, os abusos éticos de uma classe política que, com seus reiterados e desavergonhados abusos, exaurira a paciência do povo – este já cansado de sustentar nas costas o peso de um Estado corrupto e ineficiente.
Hoje, porém, as velhas notícias sobre desvios de recursos já não dominam as manchetes jornalísticas. Tudo o que nelas se lê são questionamentos quanto ao que seriam as supostas “más maneiras” com que o Presidente interagiria com a imprensa e o Legislativo: diz-se, nessa perspectiva, que ele não se pautaria pelo “decoro” necessário ao cargo que ocupa. Ora, sem dúvida, a própria mudança no teor da cobertura jornalística evidencia o grande salto qualitativo havido no Brasil: antes, questionava-se a ética de nossa classe política; hoje, critica-se o que, no máximo, corresponderia à estética do Presidente. A evolução, meus caros, foi significativa!
As mais recentes críticas a Bolsonaro surgiram a propósito de manifestações de apoio ao Presidente marcadas para o próximo dia 15 de março, nas quais devem-se ouvir críticas ao Poder Legislativo e mesmo ao Supremo Tribunal Federal. Desde então, opositores têm dito que, ao apoiar as manifestações, Bolsonaro estaria pressionando indevidamente os demais Poderes e, assim, desrespeitando o regime democrático. Aqui, é oportuno recordar uma célebre frase de Ulysses Guimarães, segundo a qual “a única coisa que mete medo em político é o povo na rua”. Com essa afirmação, Ulysses – de cujas convicções democráticas ninguém pensaria em duvidar – estava, de fato, exaltando o povo que vai às ruas, exercendo seu lídimo direito de manifestação – previsto, entre nós, no art. 5º, XVI, da Constituição. Afinal, quando o povo se manifesta, está a lembrar aos mandatários eleitos que estes o representam e, portanto, não são “donos” de seus cargos.
E, se as manifestações são um direito constitucionalmente garantido de o povo pressionar a classe política, é no mínimo evidente que convocá-las ou apoiá-las não constitui qualquer ofensa à democracia. Notemos, aqui, uma importante mudança: em tempos recentes, governava-se por meio de um loteamento de cargos; agora, os cidadãos são convidados a fazerem chegar suas vozes às instituições em apoio ao governo. De novo, um tremendo salto qualitativo!
O que se percebe é que os que pretendem imputar a Bolsonaro uma suposta falta de decoro, como se seu modo de agir implicasse desvios éticos, nada mais fazem do que criticar sua estética. Goste-se ou não do Presidente e do modo como ele se expressa, não há nada objetivo em suas ações que implique qualquer ataque às instituições democráticas, como alguns têm afirmado.
É evidente que os protocolos inerentes aos cargos públicos são importantes. Mas uma liturgia vale pelo que ela de fato significa, e não pela simples ritualística externa de que se reveste: liturgias religiosas, por exemplo, não têm valor para os fiéis em razão das palavras e dos gestos que nelas estão contidos, mas sim em função dos significados transcendentais para as quais apontam.
Do mesmo modo, as liturgias políticas só adquirem sentido à luz das instituições que representam: por isso mesmo, é a substância das instituições – que inclui a ética a elas intrínseca – que dá valor à forma externa de que se revestem. A estética das instituições, por si mesma, não pode garantir sua ética; mas a ética institucional, esta sim, pode dar sentido à estética. Nessa perspectiva, o decoro presidencial não pode ser encarado à luz da mera estética dos protocolos públicos, mas, objetivamente, deve ser compreendido à luz de uma ética política.
Faço, aqui, uma consideração adicional. Há pouco tempo atrás, quando ainda vivíamos sob o governo da esquerda, dizia eu a um amigo estar receoso de que o Brasil se tornasse algo como uma nova Venezuela; e ele me exortava a ficar despreocupado, pois nós, brasileiros, teríamos “instituições sólidas”. Mas era precisamente dessa tão alardeada solidez institucional que eu duvidava.
Nossa história constitucional demonstra que as instituições brasileiras ainda não se provaram tão sólidas quanto comumente se supõe: enquanto, por exemplo, a Constituição dos Estados Unidos da América entrou em vigor em 1789 e jamais foi abolida, o Brasil, apenas nos 130 anos da República, teve seis constituições! Com efeito, ao longo do século passado, não houve no Brasil instituições que dessem conta de impedir tamanha instabilidade política e constitucional.
Por outro lado, em nossa história recente, os protocolos inerentes aos cargos públicos não conseguiram ser mais do que uma cobertura estética para um sistema político que a sociedade em geral não mais conseguia levar a sério, justamente em virtude das más práticas que o dominavam. Com efeito, a estética das liturgias públicas nada fazia além de ocultar uma estrutura bastante doente do ponto de vista ético.
A eleição de Bolsonaro – que se seguiu ao processo de impeachment de Dilma Rousseff e foi acompanhada da maior renovação do Congresso Nacional das últimas décadas – se deu em um ambiente de rejeição de todo um conjunto de práticas que se convencionou resumir na expressão velha política e que o governo Bolsonaro afirma querer deixar para trás. O recado das urnas foi claro: o povo estava cansado dessa governabilidade comprada com práticas ilícitas.
Não é difícil perceber que, em meio à instabilidade constitucional brasileira e aos desvios éticos tornados lugares-comuns em nossa política, a sociedade, tristemente, acabou perdendo um pouco ou um tanto de sua fé nas instituições públicas. É a ética – e não a estética – a verdadeira preocupação de nosso povo, manifestada nas últimas eleições – até porque, convenhamos, o Brasil, com seu histórico de populismo, não é lá um grande exemplo de seguimento de protocolos estéticos.
Mais, portanto, do que nos preocuparmos com liturgias públicas – decerto importantes, mas não exatamente prioritárias – precisamos de uma grande mudança em nossas instituições, que sepulte em definitivo os vícios da velha política e nos assegure uma verdadeira estabilidade institucional, com um Estado de direito efetivamente conectado à sociedade e com mandatários que de fato representem o povo que os elegeu. Somente assim a estética pública poderá refletir uma verdadeira ética.
(*) Felipe Cola é professor de Direito e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais.