No último sete de setembro, muito se comentou sobre a participação de policiais militares nos atos antidemocráticos ocorridos em São Paulo e Brasília, que tinham como principais bandeiras o fechamento do STF, do Congresso Nacional e a implantação de um regime de exceção.
Essa relação entre as polícias militares e a ditadura não é nova. Na verdade, a história dessa corporação tem início, justamente, no período ditatorial. Até 1968, na maioria dos estados, o que havia era a chamada Força Pública ou Guarda Civil; ambas não possuíam uma organização militarizada.
É só a partir de julho de 1969, com a assinatura do Decreto Lei nº. 667 pelo ditador Costa e Silva, que as polícias militares passam a ter a organização que conhecemos hoje. O referido decreto possibilitou a instrumentalização das PM´s pelo governo da ditadura, colocando a corporação como força de reserva do exército. A intenção de Costa e Silva era clara: evitar qualquer possibilidade de controle das polícias militares pelos governadores.
A partir do Decreto 667, o controle do armamento das PM´s passou a ser de responsabilidade exclusiva do exército, através da Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), incorporada de uma lei de 1967. A IGPM era comandada por um general de brigada do exército e, entre suas atribuições, estava a escolha dos comandantes das PM´s em todos os estados brasileiros.
Mesmo com a volta da democracia a estrutura das Polícias Militares manteve-se praticamente a mesma, pois a Constituição de 1988 incorporou, em grande medida, o conteúdo do Decreto Lei 667 de 1969. A herança da ditadura militar também se faz presente no modus operandi das PM´s, sobretudo nos chamados “autos de resistência”, utilizados para tentar encobrir execuções. Esse procedimento, muito comum nos dias atuais, era usado pelos agentes dos órgãos de repressão, tais como o Doi-Codi e o Dops.
A prática da tortura também é outro legado da ditadura para as PM´s. Obviamente que, torturas ocorreram em períodos históricos anteriores à ditadura militar. No entanto, a forma institucionalizada dessa prática tem como referência os órgãos de repressão dos tempos da ditadura.
Os próprios policiais, em alguns aspectos, acabaram sendo vítimas do legado ditatorial para a corporação. Um exemplo disso é a permanência de princípios da legislação da ditadura nos regimentos disciplinares, até os dias atuais. Nesse sentido, o caso da PM do estado da Bahia é emblemático: até pouco tempo, regimento disciplinar daquela corporação exigia que os policiais pedissem autorização formal para se casarem.
Outra marca da ditadura militar na Polícias Militares é a predileção dessa corporação em reprimir ativistas sociais, estudantes e membros de organizações populares em geral. Essa característica decorre diretamente do processo formação ideológica da corporação militar pelos órgãos de repressão, que incutiu no seio das PM´s a lógica do “inimigo interno” e da criminalização das lutas sociais.
Como podemos observar, portanto, a expressão “entulho autoritário”, utilizada no início do período de redemocratização para caracterizar os aspectos do governo ditatorial que insistiam em permanecer, cabe perfeitamente para definir à forma de organização das polícias militares herdada dos tempos da ditadura.
*Fred Santiago é historiador e membro do Grupo de Pesquisa Ditadura, Resistência e Memória.