No bojo da onda conservadora que emergiu no Brasil a partir de 2016, um aspecto em especial chamou atenção da comunidade de historiadores: um interesse, quase obsessivo, pelo período da ditadura militar brasileira; mais especificamente, um compulsivo desejo de “revisar” o período ditatorial. Nesse sentido, vem se destacando a produtora Brasil Paralelo, fundada em 2016 e sediada em Porto Alegre.
Apesar de tratar de temas variados, a referida produtora tem foco em história, especialmente a história do período da ditadura militar. Sobre essa temática, os principais conteúdos produzidos são um documentário intitulado “1964: o Brasil entre armas e livros” e o livro “Entre mitos e verdades – a história do regime militar”. Esse último é uma espécie de versão reduzida do documentário.
Do ponto de vista historiográfico os conteúdos produzidos pela Brasil Paralelo, no tocante ao período da ditadura militar, são um fiasco completo. A narrativa é organizada a partir de um enredo delirante, estruturado em termos típicos do período da guerra fria, tais como “subversão comunista”, “república sindicalista”, “ameaça comunista”, etc. Tais expressões, no entanto, não são apenas demonstração de ignorância histórica.
Na verdade, o léxico da guerra fria tem uma função muito específica no texto, que é a de induzir o leitor/espectador a chegar à conclusão equivocada de que o golpe de 1964 teria sido uma ação política para evitar a tomada do poder pelos comunistas. A falsidade dessa hipótese já foi fartamente demonstrada pela historiografia especializada, porém, no universo paralelo da produtora sulista as evidências históricas pouco importam, pois o objetivo primordial é tão somente tentar justificar o golpe de 1964.
Para tanto, a Brasil Paralelo se utiliza de uma série de estratégias: citações sem indicação das fontes, falsas citações, pequenos trechos retirados de fonte documental sem situar o documento no contexto mais amplo, omissão de partes das fontes que desmintam as teses apresentadas, etc. Um pequeno exemplo ajuda a ilustrar o péssimo exemplo de “história” produzida pela Brasil Paralelo: no livro Mitos e Verdades…, na página 31, os autores tentam apresentar “evidências históricas” para comprovar, que em 1964 o Brasil estava na iminência de um golpe comunista.
Quais a evidências históricas apresentadas? “guinada socialista no país, assinalada pelas reformas propostas por Jango e por uma proliferação de cartazes com a foice e o martelo, símbolo mundial do comunismo” (2018, p.31). As Reformas de Base, todas elas dentro dos marcos da democracia liberal burguesa, inclusive submetidas ao debate no parlamento e a quantidade de cartazes com símbolos do comunismo, irrompem na fraseologia pseudo-histórica da Brasil Paralelo como provas cabais do risco de tomada do poder pelos comunistas. Mais falso, impossível!
Mais adiante, se observa outra estratégia muito comum da Brasil Paralelo: a manipulação de datas. Afirmam os autores: “Em 1964, universitários da cidade de Niterói, no Rio de Janeiro, se uniram e formaram o Movimento Revolucionário 8 de Outubro” (2018, p.46). Na verdade, como nos mostra Daniel Aarão Reis em Imagens da Revolução, o que se formou em 1964 foi a chamada Dissidência da Guanabara, grupo formado por militantes do PCB, que haviam discordado da linha política do partidão. V
ale ressaltar que, a DI-GB só se afasta formalmente do PCB em 1966 e, apenas em 1969 passa a adotar o nome MR8 e a participar das ações armadas. Nesse caso, teria a Brasil Paralelo cometido apenas um erro de cronologia? Não! A tentativa de antecipar o surgimento do MR8, uma organização da esquerda armada, visa justificar a repressão que se seguiu ao golpe. O raciocínio ardiloso, com base numa falsificação histórica, seria o seguinte: “Se em 1964 já existiam organizações praticando a luta armada, logo, toda repressão, inclusive a praticada a partir do AI-5, estaria justificada”.
Outra característica do modus operandi da produtora em questão é a total falta de embasamento em outras pesquisas da literatura especializada sobre o período ditatorial. Ao chegarmos à página das referências em Mitos e Verdades… nos deparamos tão somente com a indicação de seis endereços eletrônicos. Nenhum pesquisa séria citada. Nenhum trabalho historiográfico como referência.
Na tentativa de justificar o vazio historiográfico em relação ao que já se produziu sobre a ditadura militar os autores da Brasil Paralelo recorrem ao já surrado argumento de que tudo que se escreveu até hoje sobre o período ditatorial é obra de pesquisadores comunistas infiltrados nas universidades para conquistar a hegemonia, naquilo que eles chamam de “marxismo cultural”.
Ou seja, sai a pesquisa histórica e entra a teoria da conspiração; Sai a história como conhecimento cientificamente elaborado, como dizia Lucien Febvre,, e entra a mera opinião. Assim, a Brasil Paralelo estaria mostrando “o outro lado” da história, como se a falsificação histórica fosse uma interpretação dos fatos tão válida, ou até mesmo superior, à toda produção historiográfica acadêmica.
Como podemos perceber, a ”revisão da história” pretendida pela produtora de Porto Alegre é pura falsificação histórica. Esse procedimento, que tem como um dos princípios a manipulação de todas as evidências históricas, nos remete ao que Hanna Arendt, na obra intitulada Entre o Passado e o Futuro chamava de “mentira organizada”, definida por essa pensadora como “Arma mais adequada contra a verdade”, nesse caso, especificamente, contra a verdade factual.
A Brasil Paralelo, executando a falsificação da história através mentira organizada, pratica algo muito semelhante ao que fazem os negadores do holocausto nazista: assassinam a memória, na clássica definição de Pierre Vidal Naquet. Inclusive, a caracterização dos assassinos da memória por Naquet, nos ajuda a melhor compreender a natureza dos que executam a mentira organizada: “Uma seita minúscula, mas obstinada, dedica todos os seus esforços e emprega todos os seus meios, panfletos, fábulas, histórias em quadrinhos, estudos pretensamente científicos e críticos, revistas especializadas, para destruir não a verdade, que é indestrutível, mas a tomada de consciência da verdade” (1998, p.9).
Como afirmava Eric Hobsbawn, enquanto historiadores, “Temos uma responsabilidade pelos fatos históricos em geral e pela crítica do abuso político-ideológico da história em particular”. Assim, no que se refere a falsificação da história propagada pela Brasil Paralelo, é preciso desmascará-los, confrontá-los e demonstrar que, o que eles pretendem é, novamente recorrendo a Pierre Vidal Naquet, “Substituir a verdade insuportável pela mentira tranquilizadora”, com o intuito de usar o passado para tentar legitimar seus arroubos autoritários no presente.
*Fred Santiago é historiador e membro do Grupo de Pesquisa Ditadura, Resistência e Memória.